O jornalista Flávio Gomes escreveu esse texto e foi publicado na revista Quatro Rodas em 2005. Como saiu com alguns cortes, publicou na íntegra em seu blog, em dezembro daquele ano. A dica foi dada pelo meu amigo João Guilherme de Campinas-SP. Nessa história do Flávio me fez relembrar de um ocorrido em dezembro de 1997, quando em viagem de São Paulo ao Guarujá, meu carro com seis meses de uso apagou perto da curva da onça na Rodovia Anchieta. Parei, abri o capô, olhei, olhei e fiquei pensativo. Meu filho mais velho, então com dezesseis anos, saiu do carro e disse: - E aí pai ? Você não entende de carro, por que não arruma? Olhei para cara dele e disse: - Eu entendo de carro, não de eletrônica. Aqui só tem caixas, não tem um parafuso ou porca para a gente apertar... Era combustível adulterado que deixou o computador central louco. Na época nem se falava sobre adulteração de combustível com solventes, mas já existiam salafrários de plantão em posto de combustível na região nobre de Moema.
Por
Flavio Gomes*
Não queira ter uma relação com seu carrão
cheio de botões, reboque cromado para não puxar nada, flex powers, trios
elétricos, fly by wire, e ABS igual à que eu tenho com os meus. Você vai
perder.
Meus carros têm nome, eu converso com eles e
entendo o que se passa no seu coração. Ninguém olha para você nesse esquife
filmado com vidros escuros como o breu. Para mim, todos olham e acenam.
Se o seu carrão pifar no meio da rua, ou numa
estrada no fim do mundo, ninguém vai parar para te ajudar. E se alguém se
aproximar, você vai achar que é ladrão. Se um dos meus estancar no meio da
avenida mais movimentada de São Paulo, vem um monte de gente para empurrar. E é
o pai de um que teve um igual ao meu, o tio do outro que dirigia um táxi
idêntico, a avó de um terceiro que ainda tem o seu guardado na garagem que só
usa para ir à feira, e se eu não souber o que fazer para ele pegar de novo,
alguém saberá.
Meu kit de sobrevivência nas ruas é barato. Um
joguinho de ferramentas, desses que se compram em camelôs, com uma chave de
fenda, um alicate, algumas chaves de boca. Um frasco com gasolina para jogar no
carburador de vez em quando, um galão de água para refrescar o radiador. Oh,
que coisa mais primitiva, dirá você.
OK. Tenha uma pane no seu carrão eletrônico
para ver o que acontece. Nem tente abrir o capô. Você não sabe o que tem lá
dentro. Cuidado, ele pode te engolir. Torça para o celular estar com o sinal
pleno e chame um guincho, a seguradora, o papa. Sente e espere. Seu carrão só
vai funcionar de novo quando conectarem um laptop nele. E prepare o talão de
cheques.
Meus carros, não. Têm carburadores,
distribuidores, diafragmas, bobinas e velas, tudo à vista. Sei quando o
piripaque é na bomba de gasolina. Sei quando é sujeira da gasolina. Sei
assoprar um giclê. Aliás, sei onde fica o giclê. Procure algo parecido na sua
injeção eletrônica.
Seu carro é um emérito desconhecido sem
história ou currículo. Os meus têm 40 anos ou mais, já passaram por muita coisa
nessa vida, e quando saíram de uma concessionária, décadas atrás, estacionaram
na garagem em forma de sonho realizado. Carro fazia parte da família,
antigamente.
Ah, mas o meu tem ar-condicionado, disqueteira
e controle de tração, dirá você. Sim, mas você nunca terá o prazer de dirigir
de vidros abertos e cotovelo para fora da janela, meu rádio toca as mesmas
músicas, e não me faça rir com o seu controle de tração. Quantas vezes ele foi
necessário?
Além do mais, existe um negócio chamado
prazer. Prazer de ter algo que lhe é caro e precioso, mesmo que não valha muita
coisa. Carros iguais ao seu todo mundo tem. Vejo aos milhares todos os dias, e
nenhum deles tem a cara do dono. Os meus têm. E quando eles quebram, eu mesmo
conserto. E eles me agradecem andando de novo, fazendo com que as pessoas
sorriam quando passam, fazendo barulho e soltando fumaça.
Não há nada como um automóvel que faça alguém
sorrir.
* Flavio Gomes, 41, é jornalista, tem sete DKWs, cinco
Volkwagens e uma Lambretta, todos fabricados entre 1958 e 1970. E mais umas
coisinhas escondidas que não revela nem sob tortura, porque não está a fim de
se divorciar.